Das
ilhas de Solor e Flores, onde primeiramente se establelecem, passam os
Dominicanos a vizinha ilha de Timor. Em 1562 surge o primeiro convento
dominicano em Solor; por 1590 e baptizado com o nome de D. Lourenço,
apos educado em Malaca, o primeiro chefe timorense, o herdeiro do reino
de Mena – a que outros se seguem., sobretudo depois de 1633. Em 1640 havia
em Timor 22 igrejas. Apos a queda de Malaca, tomada pelos Holandeses em
1641, passaram os bispos dessa cidade, cuja diocese incluia toda a Insulíndia,
a ter residência normal em Timor, até a extinção
do bispado no século xix. Desde 1606 existia em Larantuca, nas Flores,
um seminário ou colégio «onde aprendem os filhos dos
cristãos a ler e a contar» e em 1738 foi instituido outro
em Timor, provavelmente em Manatuto, onde ensinaram os Oratorianos de Goa.
Pelo menos ao nível de um pequeno escol de letrados nativos estes
estabelecimentos foram, sem dúvida, centros de difusão da
língua portuguesa, falada e escrita.
Nas sucessivas capitais
– Lifau ate 1769, Dili desde então – foi organizado um esboço
de administração central. O português foi logicamente
a língua administrativa, e a sua difusão deve ter-se então
incrementado. Em 1772 o comandante de um navio francês que visitou
Timor, François-Etiénne de Rosily, notava: ,l’isle de Timor
[...]. Il y a un missionaire par royaume et deux dans les grands; tous
les chefs sont chretiens et catholiques et une partie des habitants [...].
Il y a des eglises dans tous les villages sur la cote [...]. Presque tous
les chefs parlent portugais et dans les royaumes voisins des Portugais
c’est la langue generale [...]. J’en ai connu de tres senses, spirituels
ingenieux, sinceres et de bonne foy, entr’autres un qui m’a paru fort verse
dans l’histoire de l’Europe>.
E natural que após
a extinção das ordens religiosas em 1834 a instrução
e com ela o uso do portugues tenham regredido muito – pois desapareceram
os seminários e os conventos dos Dominicanos e o clero chegou a
reduzir-se no terceiro quartel do seculo xix a dois sacerdotes seculares
goeses. A despeito disso, o portugues continuava, pelo menos no meio urbano
de Dili, a ser de uso corrente, em contraste com o que se passava nas possessoes
holandesas onde era o malaio que imperava. Esta situacao surpreendeu em
1885 o viajante ingles Forbes: <in going into the various offices and
shops I was struck to find all business conducted not as in the Dutch possessions
in the lingua franca of the Archipelago, Malay, but in Portuguese>.
Os regulos perderam parte de seus poderes, tutelados
agora por uma administracao burocratica de tipo colonial, presente em todos
os cantos da Provincia e nao ja, como ate entao, apenas na capital. Os
quadros do funcionalismo dilatataram-se e neles comecaram a penetrar aos
poucos os timorenses letrados.
O governador Afonso
de Castro (1859-1863) fundara ja um colegio para os filhos dos liurais
e o P. A. J. De Medeiros, da Sociedade das Missoes Ultramarinas (depois
bispo de Macau, 1885-1897, diocese de que Timor dependia entao), reorganizara
desde 1877 as missoes catolicas, criando igrejas e escolas, a cargo do
clero secular e seus auxiliares, e das Madres Canossianas que trouxe para
Timor.
Mas o evento mais significativo
da historia cultural de Timor no período em questao foi a fundação
em 1898 do Colégio da Soibada, dirigido ate 1910 pelos Jesuitas.
Destinava-se a formação de professores-catequistas, incumbidos
ao mesmo tempo da alfabetizacao e da instrução religiosa
das populacoes rurais. Por ai passaram sucessivas gerações
de timorenses que tem constituido até aos dias de hoje a élite
cultural do território. Muitos permaneceram fieis ao tradicional
mister de mestre-escola, classe prestigiosa nos meios rurais do interior,
onde constitui ao mesmo tempo, atraves das funções de catequista,
o braço direito do clero e o seu prolongamento nos pequenos centros
populacionais. Outros ingressaram pouco a pouco no funcionalismo publico
– em cujos quadros formavam os nativos timorenses, nas vésperas
da invasão, 81 por cento do pessoal. Em 1915 abriu a primeira escola
oficial em Dili, a que outras se seguiram, espalhadas pelo território,
embora em profusão menor que a das escolas missionárias.
Juntaram-se-lhe na década de 60 as escolas militares mantidas pelo
Exécito nas zonas mais reconditas, cujo número chegou a atingir
o cento.
A despeito de uma interessante
tentativa, que nao teve depois continuidade, do governador Filomeno da
Camara (1910-1917) no sentido de ministrar na língua materna das
crianças o ensino elementar – para cujo
efeito se chegaram a imprimir livros escolares em tétum –
o ensino continuou ate aos nossos dias a ter por veículo o português.
O progresso da escolarização foi, porém, deveras lento,
salvo nos derradeiros anos, o que explica a parca difusão efectiva
da língua oficial: em 1970-1971 frequentavam a escola 28 por cento
das criançaas em idade escolar; em 1972-1973 a percentagem ascendia
a 51 por cento para atingir em 1973-1974 os 77 por cento. O desenvolvimento
do ensino secundário foi mais lento ainda: durante largos decénios,
até ao aparecimento da Soibada, nada ocupara o lugar do desaparecido
seminário dos Oratorianos; só em 1938 se intentou em Dili
a criação de um colégio-liceu semi-oficial, logo arruinado
pela ocupação japonesa durante aa II Guerra (1942-1945).
Apenas em 1952 se recomeçou, datando de então o Liceu; o
Seminário foi organizado dois anos mais tarde, em Dare, e a Escola
Técnica criada em Dili em 1965. Por 1972 surgiram em Bobonaro,
Pante Macacar (Oé-cussi), Maubisse, Baucau e Lospalos escolas do
ciclo preparatório.
Entre a comunidade chinesa
– em cujo seio não ha praticamente analfabetos – é
de regra entre os indivíduos de sexo masculino um conhecimento razoavel
do português falado e escrito, salvo entre as mais velhas gerações.
Sob a administracao portuguesa os chinas mantinham as suas próprias
escolas – 18 primárias, espalhadas pelo território e uma
secundária em Dili em que o ensino seguia os programas
oficiais da Formosa. Juntava-se-lhes por imposição legal
o ensino da língua e da história portuguesas. Mas a língua
de que normalmente faziam uso nas suas relações com a população
local era o tétum, que praticamente nenhum chinês, homem
ou mulher, ignorava.
O portugues nao chegou,
pois, nunca a tornar-se a lingua normal da comunicacao oral, nem mesmo
como lingua de contacto entre etnias de diferente falar: tal funcao continuou
a ser desempenhada ate aos nossos dias pela lingua veicular tradicional,
o tetum. Um pouco como o latim na Idade Media ocidental, o portugues manteve
em Timor o caracter de lingua clerical, administrativa e de cultura. Isso
nao singifica que seja despiciendo o seu papel: como vamos em seguida ver
em pormenor, a sua funcao e relevante, quer no plano interno como cimento
de unidade cultural entre as populacoes da metade oriental da ilha, retalhadas
numa trintena de grupos etnico-linguisticos, atraves de uma pouco numerosa
mas omnipresente elite de letrados nativos; quer no plano externo, como
cordao umbilical que articula as culturas loxais, em maior ou menor grau
ocidentalizadas por uma aculturas locais, em maior ou menor grau ocidentalizadas
por uma aculturacao quadrissecular mas de expressao exclusivamente oral,
com, todo o universo mental do cristianismo e da cultura lusiada, de expressao
predominantemene escrita, de que aquelas tradicionalmente se alimentam.
Uma lingua define, em principio, um espaco social
– isto e, o espaco determinado pelo conjunto de relacoes caracteristicas
de um dado grupo – pois cria, por si so, uma relacao, potencial, de comunicabilidade.
A essa relacao outras se juntam normalmente: relacoes de parentesco e vizinhanca,
de troca de bens, de insercao no meio fisico, etc. Inversamente, a existencia
de um espaco social definido, em que vigorem as normas aceites e observadas
pelo grupo, postula, em principio, a posse de um instrumento linguistico
que assegure no seio do grupo a comunicabilidade usual. Um espaco social
pode nao corresponder precisamente a um espaco geografico compacto, pois
um grupo nao se dispoe necessariamente de um modo coerente no espacao fisico:
e, por exemplo, frequente o caso duma minoria etnica que subsiste e guarda
a sua lingua propria apesar de disseminada em pequenos grupos no seio de
etnias de diferente lingua.
Ao nivel de integracao que
acabamos de aludir correspondem em Timor as linguas locais, regionais ou
de minorias, que sao instrumentos de comunicacao definidores de espacos
sociais restritos. Pertencentes na sua maioria a familia austronesia, dita
tambem malaio-polinesia, mas classificadas outras como <papuas> , as
linguas locais de Timor Oriental sao em numero de 19 a 31, segundo as contagens
– provindo a discrepancia do criterio adoptado na destrinca entre linguas
autonomas e variantes dialectais da mesma lingua. As principais, quanto
ao numero de falantes, sao nove: tetum, mambae, , quemac, tocodede, bunac,
baiqueno, galoli, macassai e fataluco. A estas linguas regionais ha que
juntar mais tres, que tiveram na origem um papel diferente, mas hoje funcionam,
como elas, apenas como instrumento de comunicacao em espacos sociais restritos:
o dialecto chines hakka, falado pela minoria chinesa, composta essencialmente
por comerciantes de retalho espalhados pelos pequenos centros comerciais
do territorio; o malaio, falado por uma comunidade muculmana de quatro
centenas de individuos enquistada no suburbio de Dili conhecido por Campo
Mouro; e o hoje quase extinto dialecto crioulo conhecido por <portugues
de Bidau> falado no suburbio desse nome, do lado oposto da cidade. O portugues
– na sua forma literaria, desta vez – e, naturalmente, a lingua matena
dos raros europeus criados no territorio, bem como da mor parte dos mesticos,
cujo numero, segundo o censo, era, em 1970, de 1939.
Todos estes espacos sociais
restritos se integram num espaco social mais vasto, em que e veiculo de
comunicacao o tetum – nao o tetum falado nas regioes em que e lingua propria,
designado por tetun teric ou tetun los, mas uma variante gramaticalmente
simplificada e mesclada de portugues, mais proxima, pois, do chamado tetun
praca falado em Dili e seus suburbios. E de notar que a sua funcao nao
e, em relacao aos gurpos implicados, meramente lateral, de comunicacao
externa, mas integradora, definindo por assim dizer federativamente, acima
dos grupos etno-linguisticos, uma entidade superior, uma etnia timorense
aceite e assumida pelos seus participantes. Essa entidade e, para usarmos
a terminologia aristotelica, dotada nao apenas de extensao como ainda de
compreensaok isto e, inclui em maior ou menor grau, elementos culturais
comuns, que vao da integracao numa ordem politico-social com fundas raizes
no passado, as imbricadas relacoes de parentesco no seio da aristocracia
territorial tradicional, passando pela aceitacao de um catolicismo ao menos
implicito e de outros elementos de aculturacao que definem uma civilizacao
que podemos designar por luso-timorense. Deve contudo notar-se que o uso
do tetum como lingua veicular e, consequentemente, a sua funcao integradora
se atenuam na periferia do espaco geografico luso-timorense: tanto no enclave
de Oe-cussi como na Ponta Leste (isto e, grosso modo, no concelho de Lautem)
a difusao do tetum e escassa, e como segunda lingua, para a comunicacao
com os forasteiros, e preferentemente utilizado o portugues.
Este funciona em todo o territorio como lingua de administracao e de
cultura (tomando este ultimo termo no seu sentido mais restrito, isto e,
para denotar as formas de saber colectivo veiculadas sobretudo por transmissao
escrita). O portugues e, alias, a unica lingua normalmente escrita, pois
a despeito da impressao de alguns dicionarios, metodos, catecismos, livros
de oracoes e resumos da Biblia em tetum e em galoli, nunca se impos o uso
escrito das linguas vernaculas. Mesmo na correspondencia particular, os
timorenses preferem em regra escrever – ou ditar a quem o saiba fazer –
cartas em portugues a utilizar o idioma local ou mesmo o tetum, cuja notacao
lhes parece embaracosa a falta de uma convencao ortografica arreigada no
uso.
Mas o portugues tem, tal como o tetum, alem desta, outra funcao: uma funcao integradora na sociedade timorense ao nivel pelo menos das camadas dirigentes, dos letrados que ocupam na piramide social uma posicao cimeira. Como notamos ja, um dos factores de unidade e, em Timor, a difusao de uma cultura luso-timorense, fruto de uma aculturacao paulatina ao longo de quatro seculos e meio de contacto. Atraves dessa cultura mesticada (de que o catolicismo e a lingua portuguesa sao talvez os dois elementos-chaves) a populacao timorense em geral e a sua classe dirigente em especial integram-se num universo cultural mais amplo, o da civilizacao lusofona.
Estabelecendo, para maior
clareza, um paralelo com algo de mais conhecido, podemos comparar o sistema
linguistico a tres niveis em Timor vigente ao que vigorava na Idade Media,
por exemplo na Italia: a um primeiro nivel o dialecto local, a um segundo,
integrador, o toscano, universalmente aceite como lingua de relacao e de
cultura, e a um terceiro, finalmente, o latim, elistista e clerical, quase
exclusivamente escrito, menos difundido mas mais integrador ainda, porque
articulante da Italia com todo o complexo cultural da cristandade ocidental.
Um outro paralelo seria o da India, com as linguas vernaculas, neo-aricas
ou dravidicas, como suporte e veiculo da <pequena tradicao> regional,
e o sanscrito, apanagio dos cortesaos e dos literatos e da cleresia bramanica,
como veiculo da <grande tradicao> classica, pan-indiana.
Fonte: De Ceuta a Timor Luis Filipe Thomaz
é professor de História na Universidade Nova de Lisboa, onde
formou ja um bom escol de historiadores-orientalistas.
Licenciado em História pela Faculadade de Letras de Lisboa e em
línguas orientais pelo Institut National des Langues et Civilisations
Orientales, de Paris, pelo Institut Catholique e pela Universidade de Paris
III. Tem-se dedicado sobretudo à história do Oriente, com
especial atenção para Timor, onde foi outrora militar, jornalista
e professor de latim e grego no Seminário Diocesano de Dare.